O FLUMINENSE ME DOMINA – O dia que conheci Telê

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De vez em quando, eu saía com meu pai sozinha. Era pirralha, não devia ter mais de dez anos. Pegávamos o 432 e íamos até as Laranjeiras assistir aos jogos. No caminho, ele contava algumas histórias e me explicava como as coisas funcionavam naquele tempo, quando ele ainda morava no interior fluminense, e escutava os jogos pelo rádio, junto ao seu tio Guilherme, quem o tornou tricolor.

A um jogo de verdade, no estádio, ele só foi com 9 anos. Era 1950, pós Maracanaço, Fluminense x Bangu, e perdemos. Diante da minha decepção pelo fracasso, ele emendava com um consolo: “apesar do revés, nada mudou, porque o Fluminense lutou muito.” E eu pensava que, mesmo tendo sido ruim, foi bom ter estado lá (ao lado do Flu).
No entanto, eram as vitórias que lhe faziam vibrar e nada enchia (e, até hoje, enche) mais meu pai de orgulho do que “a esquadra campeã mundial de 1952”: Castilho, Píndaro, Pinheiro, Jair, Edson, Bigode, Telê, Didi, Marinho, Orlando Pingo de Ouro e Quincas.

Me lembro achar muito engraçada a forma que ele dizia alguns nomes (com entonação de rádio – Píííííííííndaro). Ali, meu pai voltava a ser criança no aspecto mais encantador: o da inocência. Aquele era seu time de botão e, não à toa, ele sempre se estendia em um jogador, “um ponta muito veloz, inteligente e, sobretudo, raçudo” chamado Telê. “Esse dava a vida pelo Fluminense! Quando ele entrava em campo, a partida mudava, era o nosso Fio de Esperança.”

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E sempre que saíamos, caíamos no mesmo assunto. Foram nesses jogos em Laranjeiras que fui me tornando cúmplice do meu pai em um sentimento muito particular. Aquilo era nosso: o Sol batendo na arquibancada estreita, lotada, onde todo mundo ficava encolhido, e o Cristo abençoando aquele lugar que era para mim o céu na Terra. Dia de jogo e eu já acordava eufórica! Meu pai, que nunca ficava nervoso, repetia para mim: “o Fluminense não se escolhe, filha, é como uma vocação. Não é para qualquer um.”

Na minha casa, tive a sorte de ter meus dois lados da família torcendo pelo Flu. Daí saíram as minhas duas referências. Se, por um lado, meu pai é um típico “fidalgo”, por outro, em compensação, tenho meu “dindo”, bem mais jovem, um hooligan tupiniquim, daqueles que bebiam até cair e todo jogo se metia em alguma confusão. Com meu outro tio caçula, eles eram ‘locais’, conheciam tudo e todos e era uma avacalhação maravilhosa. Foi com eles que vivi o Maracanã em todo seu apogeu da década de 1980. E como amava aquilo! Ficava muito na casa dos meus avós, então também acompanhava toda a atmosfera de uma ida ao Maracanã, mesmo sem ir. A galera dos meus tios devia contar com uns 50 insanos na linha deles que se concentravam, muitas vezes, na casa dos meus avós. Era um entra e sai em dia de jogo, desde cedo, todo mundo de camisa, muitas bandeiras, com meu dindo sempre tenso, enrolado com a dele. Aliás, a mesma que o adornava quando, desmaiado no capô de um carro, estampou a capa do jornal O Globo, (para desespero do meu avô caretérrimo), quando o Fluminense sagrou-se (bi)campeão brasileiro, em 1984.

E, assim, fui me integrando espontaneamente: pedia para botar a blusa, cantava o hino, balançava bandeira e ia me interessando cada vez mais. Não posso precisar qual jogo, mas foi em 1984, devia ter uns 4, 5 anos, quando me levaram ao Maracanã. Nesta época o estádio era um território bem inóspito de se frequentar. Era bem raro criança ir, ainda mais sendo menina. Eu só posso achar que estava todo mundo viajando e me levaram escondida. Nenhuma chance da minha mãe ter deixado, ainda mais naquela versão (sargento) anos 80, enfim…. Era um calor absurdo, a arquibancada estava apinhada de gente, e eu pouco me importei. De algum modo, já pertencia àquilo, da mesma forma que aquilo me pertencia… o mar de gente, as bandeiras, a bruma deixada pelo pó de arroz, as flâmulas… e as cores… não existem, no mundo, reunião de cores mais linda que a nossa.

Ainda sem entender muito o que se passava, alguém gritou para eu fechar os olhos. Tomei de Careca um batismo de pó de arroz mas nem precisava, porque o Fluminense já se tornara minha religião. Como Nelson Rodrigues, “sou tricolor, sempre fui tricolor. Eu diria que já era Fluminense em vidas passadas, muito antes da presente encarnação.”
E, dessa forma (intensa), os anos foram passando, meus tios casando e se mudando para fora do Rio. Chegamos à década de 90, a tal perdida. Eu e meu pai continuamos assistindo aos jogos em Laranjeiras, perto da Young, como de costume, não sendo diferente naquele fatídico Flu x Atlético PR, que acabou se tornando meu último, na companhia de meu pai, no estádio.

Chegamos também ao meu primeiro ídolo eterno tricolor: Super Ézio (Januário de Oliveira). Não posso precisar se eram os gols que ele sempre marcava nos fla x Flus, ou pela identificação com o clube, mas Ézio se tornou ídolo da minha geração, aquela que ia ao Maracanã envolta na nostalgia dos antigos, mal-acostumados com as glórias de nossa história, num quase masoquismo. E como era chato assistir aos jogos por conta do baixo astral deste pessoal. Muitas vezes, o jogo se tornava o próprio muro das lamentações.

Por causa disto, passei a ir com um grupo da minha idade e estávamos em outra! O quê podia ser sacrifício para alguns muitos, era privilégio para nós. A gente ia para ver o Fluminense, incondicionalmente. Tinha 16 anos, e não ganhávamos um Estadual há nove, fato que as torcidas rivais não perdoavam: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9… parabéns a você, entoavam debochadamente.

Logo, nesse cenário, era uma verdadeira catarse quando Super Ézio metia um monte de gols no Flamengo. E assim fomos até a final do Carioca de 1995 e o gol de barriga que, de tão extraordinário, até hoje não consigo acreditar ter acontecido de verdade. Mas o Fluminense tem dessas coisas. A pecha de ‘timinho’ que tentam a todo tempo nos imputar, nos torna ainda mais fortes. Naquele 25 de junho, nós, do timinho, carimbamos a faixa molamba: 100 anos, sem títulos!

Como bem nos lembramos, a inveja que sempre veio (e virá) de lá se escancarou no desmonte que fizeram do nosso time para o ano seguinte, mas nosso destino começara a ser traçado ainda em 1995, na partida contra o Santos, quando tínhamos uma vantagem conquistada em um jogo de sonhos no Maracanã (que eu estava). Graças à ausência de Sorlei, a zaga foi recomposta com Alê. As consequências desta escolha de Joel Santana, colhemos no final do Brasileiro de 1996, quando fomos rebaixados pela primeira vez, com a mãozinha flamenguista que entregou seu jogo (ao Bahia) que poderia nos livrar.

Fomos salvos, o presidente aparvalhado estourou aquele champanhe, e ficamos marcados por algo que todos fizeram, mas que o preço, somente nós pagamos. Foram mais dois rebaixamentos seguidos e, com eles, a angústia de pensar que o Fluminense poderia acabar. A sensação de impotência se tornou uma constante.
Nesse contexto de terra devastada, dois dos maiores treinadores à época, se juntaram em prol do Flu, por amor a ele: Carlos Alberto Parreira e Telê Santana.

Anos antes, assistindo ao Apito Final, devia ser 1993, sei lá, a paulistada estava toda alvoroçada com o São Paulo supercampeão. Foram na concentração do time que, se não me negano, ia disputar a Recopa ou a similar da época. Primeiro entrevistaram uns jogadores e, por fim, Telê. Acho que foi o China, mas posso estar confundindo, quem mandou a pérola:

“Com tantos títulos pelo São Paulo, já se tornou tricolor?”

E, no mesmo laço, Telê respondeu que “tricolor eu sempre fui e sempre serei. O Fluminense é algo que se carrega para sempre.”

Assim, mesmo sem ter saído, Telê voltava à minha vida, naquele 1998, para se tornar o ‘meu’ Fio de Esperança no que parecia ser um pesadelo sem fim. Ele assumiria o futebol, enquanto Parreira comandaria o time dentro de campo.

Só que tal união não pôde ir avante porque Telê começaria, pouco depois, seu calvário, que só terminaria em 2006, com seu falecimento.

Como sabemos, em 1999 escrevemos mais uma página de nossa história com o título brasileiro da terceira divisão e a volta à Série A, (facilitada pelo caso Sandro Hiroshi), onde, por mérito nosso, permanecemos.

Em 2002, perdi meu avô poucos meses antes do Fluminense completar cem anos de existência. Dessas coisas do destino, minha irmã ganhou ingressos para assistir ao filme do Canal 100, em homenagem ao centenário tricolor, que abriria as comemorações. Quando chegamos ao Odeon, fomos recebidos por Mickey, Samarone, Assis, Washington, Riva, Gerson, Delei, Branco, Romerito… e o Super Ézio. Me permitam, foi foda!

Um pouco mais reservado, estava ele, o ídolo que conheci através das lembranças do meu pai, Telê. Ele estava um tanto debilitado, sentado numa cadeira de rodas, mas visivelmente emocionado com a festa que todos lhe faziam. Eu fiquei tão “mexida”, que paralisei. Ia pegando os autógrafos na camisa, enquanto tomava coragem para ir falar com ele. Então, tive a brilhante ideia de jogar uma água no rosto no banheiro. Resultado: quando saí, ele tinha ido embora.

“Corre que você ainda consegue pegar!” A sorte foi essa! Como não tinha muito tempo para pensar (e ficar cheia de neurose), fui no embalo até o carro, que já saía. Bati no vidro, que abriu. Me desculpei pelo transtorno e perguntei se ele poderia assinar minha camisa. Diante da afirmativa, agradeci e disse: meu pai te viu jogar e sempre me contou que você mudava o rumo do “derby” quando entrava, que dava a vida pelo Flu….

Ele parou, me olhou e sorriu, ao passo que continuei:

Em 98, você não nos abandonou, era nosso pior momento. Nunca vou ter como te agradecer…. Você é o meu ídolo.
Comovido, ele chegou mais perto e me disse, baixinho: “obrigado”. E partiu.

Na camisa toda autografada, uma rasura é a minha preciosa assinatura de Telê Santana.

No dia seguinte, 21 de julho de 2002, o clube havia aberto suas portas para a torcida fazer sua festa. Eu e meu pai pegamos, uma vez mais, o 432 e parecíamos estar no paraíso! Num determinado momento, começou um burburinho. Telê havia chegado. Era tanta gente que não conseguimos ficar muito perto mas já tinha valido. Lá estávamos eu e meu pai, em Laranjeiras, novamente, para ver o Fluminense. E, dessa vez, com Telê. Não importava mais nada.

Saudações Tricolores,

Bibi Medici


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