Campeonato Carioca: a subversão do Estado de Direito em 9 atos
Campeonato Carioca: a subversão do Estado de Direito em 9 atos
Nemo auditur propriam turpitudinem allegans
No último domingo, os amantes do futebol acompanharam estarrecidos o imbróglio envolvendo a realização da partida entre Fluminense e Vasco, válida pela final da tradicional Taça Guanabara, que culminou com o enfrentamento das forças policiais por parte dos torcedores cruz-maltinos e as lamentáveis cenas de violência nos entornos do estádio do Maracanã, transmitidas ao vivo para todo o país.
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Tais fatos deixam em dúvida a existência de um Estado de Direito, passando a impressão de que, no Brasil, a malandragem e a falta de ética são o caminho mais eficiente à defesa dos interesses pessoais.
A falta de um senso natural de preservação de ordem social baseada nas instituições criadas por uma república, especialmente o Poder Judiciário, saltou aos olhos dos operadores do Direito, chegando ao ponto de se estar diante de cenas surreais. Quase trinta mil pessoas em frente a um estádio de futebol, muitas em confronto com a Polícia Militar, e a opinião pública, tendo como porta-voz a imprensa esportiva, sequer abordavam o ponto principal: a existência de uma decisão judicial plenamente vigente determinando o fechamento dos portões.
Relembrando os fatos, tem-se que, em razão de sorteio realizado na Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FFERJ), o Vasco da Gama foi escolhido como mandante do jogo decisivo. Embora o regulamento da competição seja expresso em determinar que o estádio do Maracanã deve ser considerado campo neutro (art. 59), a indicação de um clube mandante é necessária para fins estritamente operacionais, incumbindo-lhe a organização da partida, venda de ingressos e do esquema de segurança.
Nesta reunião, definiu-se que a final seria realizada no Estádio do Maracanã, bem como que a torcida vascaína se posicionaria no Setor Sul do Estádio, autorizando-se, de imediato, a comercialização de ingressos pelo clube mandante, o que deu início a uma série de controvérsias jurídicas envolvendo os clubes, a FFERJ e o Consórcio Maracanã, administrado pela Odebrecht.
Isto porque, nos meados de 2013, o Fluminense celebrou contrato de uso do estádio com o Consórcio Maracanã, pelo prazo de 35 anos, no qual ficou definido que o clube utilizaria integralmente o Setor Sul do estádio, mesmo como visitante, à exceção de três hipóteses, expressamente definidas no anexo V do instrumento, quando, ainda assim, usaria o Setor Sul, contudo, parcialmente.
Embora o foco do presente artigo não seja a interpretação da referida cláusula contratual, é importante esclarecer que o contrato vincula Fluminense e Consórcio Maracanã, obrigando-os a respeitar e a garantir o respeito às condições contratuais estabelecidas entre as partes. Na espécie, o Consórcio tem a obrigação contratual de garantir ao clube a ocupação integral do Setor Sul do estádio em suas partidas, independentemente da condição de mandante ou visitante, salvo se, neste último caso, mediar e obtiver a anuência do Fluminense para arranjo diferente quanto ao posicionamento das torcidas. Neste caso, a torcida tricolor ainda seria alocada no Setor Sul, mas não na sua integralidade, como disposto na regra do contrato. Tal disposição, diga-se, vinha sendo estritamente observada pela empresa concessionária do estádio desde a celebração do contrato, jamais tendo sido questionado o alcance da cláusula em questão até o lamentável episódio ocorrido neste final de semana.
Com base nisso, o Fluminense apresentou petição nos autos do processo judicial em que litiga contra o Consórcio Maracanã, requerendo o cumprimento do contrato, de modo que a sua torcida ficasse posicionada integralmente no Setor Sul. Aqui é importante ressaltar um ponto: esta relação é estritamente comercial, motivo pelo qual não é de competência da Justiça Desportiva a apreciação do mérito deste litígio, mas da Justiça Comum estadual, não havendo que se falar, portanto, da garantia do art. 217, § 2º, da Constituição Federal.
O Juiz do caso, Dr. Sandro Lucio Barbosa Pitassi, responsável por apreciar litígio anterior entre Fluminense e Consórcio envolvendo o contrato de utilização do Maracanã e, por esse motivo, profundo conhecedor do instrumento e do histórico de disputas entre as partes, concedeu prontamente a liminar postulada pelo clube e determinou a suspensão da comercialização de ingressos no Setor Sul para a torcida do Vasco, exigindo a observância do contrato, no sentido de garantir que a torcida tricolor se posicionasse integralmente no Setor Sul do estádio, sob pena de multa de R$ 50.000,00 por hora de venda de ingresso em desacordo ao estabelecido.
O Consórcio Maracanã manifestou-se alegando que havia cumprido a liminar, o que teria feito adotando as medidas supostamente ao seu alcance, limitando-se ao envio de notificação ao Vasco – clube mandante e responsável pela venda de ingressos – acerca da decisão. Ademais, citando a supracitada cláusula contratual, aduziu a concessionária do estádio que “o contrato dispõe de forma clara que a torcida do FLUMINENSE pode sim ser alocada em outros setores, “(iii) nos casos em que o FLUMINENSE for visitante”, caso este em que a Concessionária poderá “mediar acordo entre o FLUMINENSE e o clube mandante (Vasco da Gama, no caso)”.
Em que pese a interpretação equivocada da cláusula contratual dada pelo atual presidente do Consórcio Maracanã, a partir daí, sucede uma impressionante série de subversões da ordem jurídica, colocando em risco a ordem pública, a segurança jurídica e a própria credibilidade do Poder Judiciário.
O primeiro ato desse roteiro tenebroso ocorre no momento em que o Presidente do Vasco da Gama alega publicamente que seria impossível cumprir a decisão liminar, pois o clube já havia iniciado a venda de ingressos. Afinal, a decisão foi proferida logo no início da sexta-feira, quando o clube vascaíno já havia iniciado a venda de ingressos, com o claro objetivo de alegar a impossibilidade do cumprimento da decisão, valendo-se da tese de “fato consumado”, ainda que seja difícil crer que, em pouco mais de duas horas de venda, possa ter sido vendida uma quantidade de ingressos que inviabilizasse a realocação dos torcedores cruz-maltinos no Setor Norte do Maracanã.
Alegando que já teriam sido vendidos 11 mil ingressos, o Vasco interpôs recurso ao Tribunal de Justiça, em regime de plantão, na condição de terceiro interessado, requerendo a reforma da decisão que havia determinado a presença da torcida tricolor no Setor Sul, como vinha ocorrendo desde meados de 2013, inclusive em jogos contra o próprio Vasco da Gama.
Sem ter obtido qualquer decisão judicial que suspendesse os efeitos da liminar obtida pelo Fluminense, o Vasco e a FFERJ, irmanados na tentativa de inviabilizar o respeito ao direito do Tricolor e o cumprimento de provimento judicial, realizam reunião cujo resultado é a manutenção da torcida do Vasco no Setor Sul, fazendo letra morta da decisão prolatada.
Diante desse fato, o Fluminense, tendo em vista o flagrante descumprimento da decisão até então válida e vigente proferida por um Juiz de Direito, especialmente quanto à segurança de sua própria torcida, noticia, então, o ocorrido e pede, nos autos do agravo interposto pelo Vasco da Gama, seja realizada a partida com portões fechados, em razão de toda a celeuma e dos riscos envolvidos na realização do jogo com a presença de torcedores.
Ao apreciar o recurso durante o plantão judiciário, a Desembargadora Lucia Helena Passos deferiu parcialmente o pedido do Fluminense, para determinar a realização do jogo a portas fechadas, sem a presença de torcidas, com a consequente devolução dos ingressos aos torcedores que já os haviam adquirido.
Não satisfeito, o Vasco da Gama ainda requereu, como última cartada, esclarecimentos à desembargadora, tentando reverter a decisão proferida, pedindo que a magistrada a reconsiderasse. O efeito foi contrário, já que a desembargadora não só não reconsiderou a sua posição como impôs multa no valor de R$ 500.000,00 em caso de descumprimento ao que fora decidido por ela.
O segundo ato ocorre quando o Presidente do Vasco, em atitude de inadmissível desrespeito ao Poder Judiciário, cogita publicamente o pagamento da multa para burlar a ordem judicial. A multa foi levianamente tratada como se mera fiança fosse – “paga e pode abrir os portões” –, quando, em verdade, a decisão foi no sentido de que as entidades envolvidas na partida não poderiam, em hipótese alguma, abrir o estádio ao público.
A direção do clube da Colina resolveu, então, encarar um provimento judicial como mera recomendação cuja obediência fosse opcional, podendo ser ignorada se, sob uma perspectiva estritamente econômico-financeira, o descumprimento da decisão e a consequente assunção da multa cominatória fossem considerados convenientes.
Ao agir assim, os dirigentes do Vasco da Gama parecem ignorar que o desrespeito a uma determinação judicial equivale a colocar em xeque a própria autoridade do Poder Judiciário e que a conduta é sancionada pelo Direito Penal. Não custa lembrar, aqui, a advertência do Ministro Celso de Mello, o qual nos lembra que “desobedecer sentenças do Poder Judiciário significa praticar gesto inequívoco de inaceitável desprezo pela integridade e pela supremacia da Lei Fundamental do nosso país”.
Ademais, para ser levado a cabo, o descumprimento da decisão pelo Vasco – àquela altura já antecipado pelo clube e largamente noticiado na imprensa e mídias sociais, com o apoio da FFERJ – teria que contar com a inimaginável aquiescência de autoridades públicas naturalmente envolvidas com a realização de uma partida de futebol, como a Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros, o Juizado Especial Criminal, dentre outros.
Em horas, tal informação foi amplamente difundida em redes sociais e imprensa, como resultado de uma reunião de emergência na FFERJ, induzindo o público a acreditar na possibilidade de descumprimento de ordem judicial não apenas por particulares, mas com a inimaginável conivência de outros órgãos públicos. Ou seja, a direção do Vasco da Gama acenou para os seus torcedores com a possibilidade de descumprir deliberadamente a decisão que o impedia de abrir os portões do estádio, incentivando-os a se dirigir para as imediações do Maracanã, a fim de criar cenário caótico que pudesse o beneficiar ao sensibilizar a já fragilizada opinião pública.
O terceiro ato acontece quando a FFERJ, em sua conta oficial no Twitter, dispõe que “em nome da segurança, mediante a decisão judicial, a recomendação da FFERJ é para que o torcedor só vá ao Maracanã, caso haja reversão na Justiça para que a final da Taça Guanabara seja realizada com portões abertos. O que esperamos que venha a acontecer”. Afinal, esta publicação ocorreu quatro horas antes do jogo, o que, obviamente, fez com que diversos torcedores, com ou sem ingresso, se deslocassem ao estádio, diante da esperança de que a decisão seria revertida em razão da parte final da mensagem, dispondo “o que esperamos que venha a acontecer”.
O quarto ato ocorre por parte do Vasco, através do seu Presidente, que a todo momento concedia entrevistas aos veículos de comunicação declarando que, no fim das contas, os torcedores poderiam entrar no estádio – mesmo que, naquele momento, houvesse decisão judicial em sentido contrário.
O quinto ato – e este muito grave – reside em nova manifestação da FFERJ, às 14h48 de domingo, no sentido de que “após reunião da FFERJ, a decisão é pela realização da decisão (…) com presença de público”. Ou seja, na lógica da FFERJ, em conjunto com o Vasco, a decisão tomada em reunião na Federação deveria sobrepor-se ao decidido pelo Poder Judiciário. Na ata da reunião, que contou com a presença do Presidente da FFERJ, do Presidente do Vasco, do Secretário Estadual de Esporte, Lazer e Juventude, do Defensor Público-Geral do Estado, do Comandante do CPE e do Comandante do BEPE, consta que “a realização da partida com portões fechados trará mais riscos à segurança dos torcedores do que a permissão de acesso dos portadores de ingressos no estádio”.
Como se vê, repetindo o modus operandi de criar as circunstâncias para depois invocar a teoria do fato consumado, o Presidente do Vasco e a FFERJ concorreram decisivamente para que fosse instaurado um ambiente de caos que pudesse servir de justificativa para suas ações posteriores, convocando torcedores para os arredores do Maracanã mesmo cientes de que havia decisão judicial contrária, válida, eficaz, em vigor e ratificada pela Desembargadora de plantão.
Às 16h50, 10 minutos antes da partida, a FFERJ e o Vasco finalmente deparam-se com um agente público com um mínimo de responsabilidade e compreensão do significado de Estado de Direito, a saber, o juiz do Juizado Especial Criminal alocado dentro do estádio do Maracanã, quando finalmente compreendem que não se poderá cogitar de abertura de portões enquanto houver uma decisão judicial que determine o seu fechamento. Em suma, o Juizado Especial Criminal lembrou ao Vasco e à Federação de Futebol do Rio de Janeiro que não vivemos sob um estado anárquico e que decisões emanadas de poderes constituídos devem ser observadas por particulares e por agentes públicos.
Neste momento, sucede o sexto ato, com o aproveitamento da situação criada para a consumação de um estado de emergência a justificar uma nova medida, amplamente fomentado pela atuação irresponsável do Presidente do Vasco da Gama e pela Federação de Futebol do Rio de Janeiro. Com milhares de torcedores na porta do estádio, propositalmente induzidos a erro, inicia-se um confronto entre torcedores vascaínos que tentavam invadir os portões e a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que tentava evacuar o local com o uso de bombas de efeito moral.
O sétimo ato dá-se com a decisão judicial de abertura de portões, tudo em razão da atmosfera confessadamente incentivada por Vasco e FFERJ, por volta de 30 minutos do primeiro tempo de jogo. Àquela altura, evidentemente 99% dos torcedores presentes no estádio eram torcedores do Vasco, eis que o Fluminense, em suas contas oficiais nas mídias sociais, havia emitido nota solicitando aos torcedores que não comparecessem ao estádio em razão da ordem judicial. Apesar disso, torcedores tricolores que tentaram ingressar no estádio foram impedidos de fazê-lo, sob o argumento de não possuírem ingressos – os quais, em razão de toda a celeuma, apenas foram adquiridos pelos vascaínos.
O oitavo ato ocorre por conta e obra da mídia, que, ao se pronunciar sobre todo o episódio, não analisa os fatos, apenas procura questionar a postura do Fluminense e de seu Presidente.
Finalmente, o nono e derradeiro ato ocorre já na segunda pela manhã, quando se noticia que a Procuradoria junto ao TJD-RJ, na pessoa do Procurador-Geral André Valentim, requer ao Tribunal Desportivo punições ao Fluminense e ao seu Presidente, Pedro Abad, sob a inusitada alegação de que o mandatário “chamou a torcida para a guerra, isso foi sanguinário. A denúncia será em cima de quem deu asa a essa confusão”. Não obstante o absoluto desprezo ao Poder Judiciário manifestado por dirigentes do Vasco da Gama, da FFERJ e do Consórcio Maracanã ao longo de todo o final de semana, o referido Procurador entende que quem deu causa às lamentáveis cenas ocorridas nos entornos do Maracanã foi o Fluminense, que, no fim das contas, apenas buscou o cumprimento do seu contrato e da decisão judicial que reconheceu o seu direito.
A manifestação do Presidente tricolor, de forma óbvia, referia-se ao time, comumente conhecido como “time de guerreiros”, de forma alguma podendo ser confundida com alguma espécie de incitação à eventual agressão aos torcedores rivais, cabendo ressaltar que o próprio dirigente teve a oportunidade de esclarecer o real sentido de sua declaração no decorrer da mesma entrevista coletiva em que a frase mencionada pelo Procurador-Geral havia sido registrada.
Por fim, mas não menos impactante, é de se notar que, diante da inexistência de tricolores no estádio, toda a confusão foi criada pelos próprios vascaínos, amparados na postura da FFERJ, do Vasco e permitida pelo Consórcio Maracanã. Relatos da imprensa e depoimentos de torcedores presentes no local dão conta de que a entrada dos torcedores vascaínos foi totalmente liberada no decorrer do jogo, sem que fosse exigida a apresentação de ingresso. Por outro lado, seguranças privados contratados pelo Vasco e policiais condicionaram a entrada dos poucos tricolores que ainda se arriscavam a comparecer ao estádio à posse do bilhete – algo virtualmente impossível, tendo em vista que praticamente não houve venda de ingressos para os torcedores do Fluminense.
Neste momento, torna-se relevante chamar a sociedade à ordem, lembrando que, num Estado Democrático de Direito, as decisões judiciais devem ser respeitadas, por pior que sejam os efeitos dela decorrentes, o que sequer foi o caso, já que o cenário caótico, como esmiuçado acima, parece ter sido deliberadamente planejado, criado e executado pelo presidente do Vasco da Gama, pela FFERJ e pelo Consórcio do Maracanã.
No último fim de semana viu-se de tudo, menos uma preocupação dos envolvidos com a credibilidade do Poder Judiciário, o respeito às instituições e à segurança jurídica. No final de tudo, o maior beneficiado foi justamente aquele que criou a própria torpeza.
Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 2019.
Fernando Franco / Gabriel Machado / Leonardo Bagno / Mattheus Montenegro / Pedro Machado