Renato Gaúcho: A crônica irremediável da paixão que se consome
Ah, Renato… Como escrever sobre a despedida de um mito sem sentir o peso avassalador da história e a ironia cruel do destino a nos cutucar, como um espinho fincado na alma tricolor? Há momentos em que o futebol, esse deus caprichoso e muitas vezes pérfido, revela sua face mais implacável e melancólica: quando transforma seus heróis em prisioneiros dourados de si mesmos, quando o fogo sagrado que um dia os consagrou arde, mas se apaga lentamente, deixando no coração apenas as cinzas de uma paixão que já não aquece a alma, mas se consome em uma melancolia quase que irremediável.
Renato Gaúcho, figura mítica que habita o mais profundo e luminoso recanto do nosso imaginário tricolor, chegou ao Fluminense carregando não apenas sua genialidade indomável e marra inata, mas também o fardo pesado de quem já não encontrava, no ofício que o eternizou, a mesma volúpia de outrora. Era como Prometeu — aquele que roubou o fogo dos deuses e o entregou aos mortais, pagando um preço eterno por sua audácia — condenado a repetir o mesmo gesto, sim, mas sem a centelha divina que um dia o motivara, sem o ardor que incendiara a todos. Não se via mais aquele Renato Gaúcho, lépido e fagueiro, faminto por glórias. No Fluminense, onde cada partida é um capítulo vital de uma epopeia, cada jogador, um fado, o destino de Renato encontrava-se em uma encruzilhada que já não era de gramado, mas de areia e mar, sob o sol implacável de um amor tricolor que exigia tudo, e de forma incessante.
Nos últimos tempos, como uma névoa densa e quase imperceptível, uma lassidão aristocrática, um desinteresse sutil, pairava sobre o ar que o treinador respirava. Nelson Rodrigues, o profeta maior das nossas obsessões e labirintos da alma, diria que Renato exibia a “fadiga de material” de um herói que já lutou batalhas demais e agora clamava mares mais tranquilos, por um respiro vital que o campo já não lhe concedia. Era como se o futebol, essa paixão devoradora que nos move, nos consome e nos joga aos céus e abismos quase que ao mesmo tempo, já não lhe oferecesse o mesmo frescor da descoberta, a mesma sede voraz de desafio que o Fluminense, em sua busca incessante por glórias e pela taça bendita, ardentemente precisava. Um “saco cheio” existencial, um cansaço que transcende o físico, tomava conta de cada gesto, de cada olhar perdido no horizonte. A cada coletiva protocolar, a cada treino que mais parecia um suplício, percebia-se um Renato que sentia estar prestando um favor magnânimo, que ele concedia ao Fluminense, ao futebol brasileiro, ao mundo que o rodeava. Um favor, no entanto, que a torcida, em sua ânsia irrefreável por títulos e atuações marcantes, por um amor que seja inteiro, já não podia se dar ao luxo de aceitar como única e suficiente moeda de troca.
Você conhece nosso canal no Youtube? Clique e se inscreva! Siga também no Instagram
Sua verdade, monolítica e inquestionável, era esculpida não em areia movediça, mas em mármore inabalável: tudo o que pensava estava certo, e quem ousasse divergir, invariavelmente errado. Não havia, aparentemente, espaço para o diálogo fecundo, para a dúvida que instiga, para a humildade que constrói pontes e aproxima corações. Era a húbris clássica, a soberba que cega os semideuses quando se esquecem de que também são mortais, sujeitos aos reveses do tempo e às novas demandas. Uma teimosia colossal que, no Olimpo do futebol moderno, com suas mil variáveis táticas, suas nuances comportamentais, com a demanda incessante por reinvenção e adaptabilidade que o Fluminense exigia com urgência, transformava-se, dolorosamente, em uma âncora fatal.
Tudo, para ele, parecia ter se convertido em um sacrifício sobre-humano. Lidar com o dia a dia, com a imprensa sempre sedenta por uma frase de efeito, com as nuances complexas do vestiário, exigia uma paciência que se esvaía como areia fina entre os dedos, incapaz de segurar o tempo. O que antes era paixão pura e arrebatadora virou fardo; o vestiário, que deveria ser seu templo de comando e inspiração, transformou-se em campo minado de desinteresse. A imprensa, outrora cúmplice e admiradora de suas tiradas geniais e irreverentes, passou a ser vista como inimiga. E os jogadores, esses gladiadores modernos, sentiram o distanciamento glacial de um comandante que já não demonstrava o mesmo amor visceral na própria guerra, e o Fluminense, um clube que respira, vive e morre por paixão, não podia e não devia se contentar com isso, com menos que a entrega total.
Mas a ingratidão é o vício dos sem memória – e nós, tricolores, temos memória, e ela é longa, gloriosa, e tecida com fios de afeto eterno! As tragédias e glórias, as lágrimas e os gritos de gol do Fluminense se misturam à figura de Renato como tinta e tela de uma epopeia grandiosa, um afresco pintado no Maracanã. O Mundial de Clubes ficará para sempre gravado em nossas retinas como o momento em que ousamos desafiar os gigantes europeus e, por um átimo, quase tocamos o céu com a ponta dos dedos, uma glória que jamais poderíamos esquecer ou diminuir, um sonho que ele nos fez viver. Sob sua batuta, o Tricolor nos fez sonhar com o impensável, dançar na corda bamba da utopia.
E como apagar da memória coletiva tricolor aquele instante mágico, quase surrealista, do “Gol de Barriga”? No ano do centenário do nosso maior rival, quando o destino parecia conspirar contra nós com requintes de crueldade, foi Renato quem materializou o impossível. Não com técnica depurada e ensaiada, mas com a magia pura do acaso; não com planejamento estratégico minucioso, mas com a poesia do improvável, a intervenção divina travestida de imperfeição que só Nelson Rodrigues conseguiria descrever. Aquele capricho do destino, aquela mão invisível que move os fios do futebol e da vida, cravou o Fluminense na eternidade, e Renato nela junto. Ali, Renato não era técnico nem jogador: era a personificação da alma tricolor, a própria mitologia em campo, escrevendo-se em tempo real, um enredo que o poeta tricolor teria amado dissecar, e nós, tricolores, teríamos nos deliciado com a leitura de cada linha.
Agora, a história, essa velha e sábia senhora de mil faces, pede que cada um ocupe seu lugar natural. É tempo de deixar que Renato volte a ser o Renato: o ídolo folclórico, o personagem de crônica que a todos encanta com sua malandragem inerente e seu bom humor contagiante. O futebol, com sua exigência implacável de corpo, alma e mente em plena efervescência, talvez não seja mais o palco ideal para sua energia e seu estilo – pelo menos, não aqui no Fluminense, que precisava de uma chama que ardesse incessante e voraz. Não. O lugar de Renato não é mais a beira do campo, carregando o peso esmagador de expectativas e cobranças que já não o motivam com a intensidade que o Fluminense, em sua busca incansável por ser maior, merece e demanda.
Que seu Olimpo seja agora outro, mais leve, mais solar, banhado em águas atlânticas. Que a grama, em seu verde exigente, dê lugar à areia quente macia, o vestiário sob pressão ao quiosque descontraído, a prancheta de táticas à rede de futevôlei, onde a alegria é genuína e sem pressões. Que ele volte, enfim, ao que sempre foi em sua essência mais pura: o rei da praia, onde o vento generoso leva embora as amarguras e traz de volta o menino que um dia encantou o mundo apenas por amor puro ao jogo, por amor ao divertimento. E que a nós, tricolores, reste a gratidão eterna e inabalável, a certeza indestrutível de que, apesar da despedida necessária e dos arranhões que o tempo possa ter trazido à percepção de alguns, o nome de Renato Gaúcho estará para sempre bordado com fios de ouro e glória nas páginas mais heroicas de nossa história, vivo e pulsante no coração de cada um que canta o hino tricolor.
Quanto ao Flu, seguirá sua temporada ainda à caça de um grande título, a Copa do Brasil – competição que seguimos vivos e com grandes chances de conquistar.
Washington de Assis