Rei Morto, Rei Posto: A Bola Não Mente
Meus caros, hoje acordei com uma célebre frase do nosso profeta-mór, Nelson Rodrigues, ecoando em minha mente: “A plateia só é respeitosa quando não está a entender nada…” Ah, Nelson, como é deliciosamente intrigante ver acontecer diante dos nossos olhos o que sua visão de gênio nos trouxe há décadas. Se estivesse presente no Maraca, nesta última rodada, talvez sorrisse diante do que foi encenado recentemente nas hostes tricolores. Porque, no palco de tantas paixões e dramas, assistimos não a uma peça teatral fictícia, mas ao alvorecer de uma verdade simples e brutal: a bola não mente. E, nela, reside a única e verdadeira meritocracia.
Meio século de vida nas arquibancadas do Maracanã me ensinou que o futebol, para além da tática e da técnica, é um espelho da alma humana. Pois certo que sim, pois são seres humanos, recheados de sentimentos mil, que fazem viver a paixão imaginária do torcedor. E, por vezes, essa alma se emaranha em futricas, em mágoas suprimidas, em hierarquias forjadas por simpatias e antipatias — e não pelo suor vertido no gramado. Isso contamina, corrói. Mas eis que, como um Apolo purificador, chega Zubeldía e, ao que tudo indica, parece munido de um antídoto de ação imediata, capaz de apagar os maculosos rabiscos tortos do passado recente.
Isto porque, meus amigos, na humilde visão deste que vos escreve, a modernidade no futebol não se traduz apenas em algoritmos ou análises de desempenho, em números frios, fisiológicos ou não. Ela reside, sobretudo, na cultura do vestiário.
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É preciso, meus caros que no altar do futebol vença o lógos — essa razão implacável que mede suor e entrega — sobre o sedutor, e tantas vezes traiçoeiro, pathos das simpatias e das amizades de bastidor. E que tudo, como nas tragédias gregas que Aristóteles decifrou há mais de dois mil anos, repouse sobre um ethos firme como colunas dóricas: caráter, honra e credibilidade que não se compram nem se emprestam. Ah, Aristóteles, seu velho de guerra… dois milênios se passaram e, no fundo, o campo e o mundo continuam obedecendo aos seus oráculos.
Trocando em miúdos: o que importa é a lógica de quem joga melhor e se esforça mais (lógos), e não a emoção de quem é mais amigo ou “chegado” do chefe (pathos). Tudo isso garantido pelo caráter e pela justiça do líder (ethos), que aplica a mesma regra para todo mundo.
É nesse ambiente renovado que a meritocracia floresce — onde a oportunidade é uma coroa que se oferece aos que mais se destacam, aos que mais se empenham, aos que, sem rodeios ou floreios, entregam mais. A prioridade, enfim, retorna aos que suam a camisa, não aos que sussurram aos ouvidos do treinador.
O Fluminense que vimos diante do Atlético Mineiro foi um time que, em sua leveza reencontrada, revelou-se mais do que competente. Ele foi uma declaração. Se antes havia um fardo invisível, agora a equipe parecia correr como o mensageiro Hermes: desimpedida. Jogadores mais dedicados, mais compenetrados, fazendo aquilo que amam com uma obediência tática visível, mas — e isso é crucial — também com prazer. A bola, antes um peso, voltou a ser um brinquedo nas mãos de adultos.
E a prova cabal, a evidência que valida toda essa catarse, não veio de um gol de placa, mas de uma celebração. Keno, que antes parecia um fragmento perdido de um grupo, entra, faz o terceiro gol e… eis que o banco de reservas inteiro irrompe em festa, corre em sua direção e o abraça no setor Sul, atrás das redes ainda balançando. Aquilo, meus amigos, é o hino da união, o grito da fraternidade que o futebol de verdade evoca. Aquilo é a materialização de um grupo que, sob o jugo do passado, talvez estivesse sendo subutilizado, subvalorizado em seu próprio valor coletivo. Aquele Keno que nos habituamos a admirar por lampejos ressurge — e com ele, o “nós” acima do “eu”.
Nas entrelinhas das entrevistas pós-jogo, percebemos os ecos dessa transformação. As palavras, cuidadosamente escolhidas, insinuam um alívio, uma insatisfação velada que agora, com a virada de página, parece ter sido dissipada. Não há mais fantasmas no vestiário, apenas o cheiro de linimento e a ânsia pela próxima batalha.
O Fluminense, com essa nova cultura, com Zubeldía como maestro a resgatar a partitura do futebol puro, só tem a vencer. É a bola que voltou a mandar. E que assim seja, porque o verdadeiro Tricolor, como um rio caudaloso, jamais perde seu curso — apenas por vezes encontra obstáculos que, com a força da união, são sempre transpostos. Que a saga continue, com a bola rolando e a verdade prevalecendo.
E que não se confunda a análise fria com a heresia da ingratidão. Este cronista de botequim, que hoje aplaude a alvorada, é o mesmo que ontem se embriagou com a glória inédita que o antigo comandante nos deu. A gratidão é eterna, mas o futebol, meus caros, é um tirano que não perdoa quem vive de memórias. A glória de ontem não ganha o jogo de amanhã. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como já filosofou, entre goles, a sabedoria de botequim. Quando um reinado se esgota, a liturgia é implacável: “O rei está morto. Vida longa ao rei!” Não há tempo para lamúrias ou para velar o passado quando a próxima batalha já nos espreita na esquina, com a faca entre os dentes.
Avante, pois! Rumo ao G4, à conquista do Brasil! Na sequência, rumo à reconquista da coroa da América.
A saga exige o agora. E o agora, amigos, se faz juntos.
Saudações Tricolores
Washington de Assis