Há 20 anos, centenário do Fluminense virava enredo da Acadêmicos da Rocinha no Carnaval

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Fluminense e Carnaval dá samba, foi o que a Acadêmicos da Rocinha provou em 2003. A Escola da Zona Sul até então não tinha qualquer ligação com o clube tirando o fato de também ser tricolor — no caso, verde, branco e azul ao invés de grená. Ainda assim, a Borboleta voou e levou os “cem anos de um clube tantas vezes campeão” para Marquês de Sapucaí. Nesta segunda-feira de Carnaval (20), enquanto os foliões brincam pelas ruas e as escolas se preparam para o último dia desfiles na Passarela do Samba, o ST relembra esta história.

A proposta de transformar o centenário do Fluminense em enredo para o Carnaval veio do então presidente da Acadêmicos da Rocinha, Ivan Martins. Duas décadas depois, Ivan lembra que a ideia surgiu em uma conversa com outros presidentes de agremiações. Até aquele momento, a Estácio de Sá já havia homeneageado os 100 anos do Flamengo em 1995 e a Unidos da Tijuca, o centenário do Vasco, em 1998. Em comum, ambas acabaram rebaixadas.

“Na época eu falei, Acyr (Pereira Alves, então presidente da Estácio de Sá e responsável pela homenagem no centenário do Fla) eu vou fazer o hino do Fluminense e o Alcyr me disse: ‘você não vai cair'”, relembra Ivan.

Em 2003, a borboleta, símbolo da escola, ganhou o escudo tricolor
Em 2003, a borboleta, símbolo da Rocinha, ganhou o escudo tricolor na Marquês de Sapucaí (Foto: Juha Tamminem)

Cruzou no céu a borboleta

Depois de sair do casulo, em 1988, a Borboleta da Rocinha voou majestosamente. Foram quatro acessos seguidos até chegar ao Grupo Especial. Depois disso, passou a alternar entre a elite do Carnaval carioca e a Série A — hoje “Série Ouro”, a segunda divisão. Em 2003, estava na Série A.

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Ou seja, um rebaixamento pela “maldição dos centenários” significaria voltar a desfilar fora do sambódramo após mais de 10 anos. Só que o espanto não foi a ousadia de Ivan Martins na escolha do enredo, mas sim porque o ex-presidente da escola é flamenguista.

“Até aqui na escola ninguém entendeu nada. Eu, flamenguista e quem ganhou o samba-enredo foi um botafoguense. Foi um negócio curioso. Mas é aquele detalhe, quando existe respeito, não existe rivalidade entre as torcidas”, contou Ivan Martins.

Ivan Martins em desfile pela Acadêmicos da Rocinha
Ivan Martins foi o presidente da Acadêmicos da Rocinha entre 1999 e 2003 (Foto: Alcyr Cavalcanti)

“É aquele detalhe, quando existe respeito, não existe rivalidade entre as torcidas”

Faltava, no entanto, o Fluminense — que completou o centenário no dia 21 de Julho de 2002 — autorizar a Acadêmicos da Rocinha a usar a imagem do clube no Carnaval de 2003. Sem qualquer ligação com clube, o presidente contou então com a ajuda de um amigo. Um dos diretores da torcida Young Flu, Flávio Frajola, foi quem fez a ponte entre Laranjeiras e a favela.

“Eu conheci o Ivan em um churrasco de aniversário do Jornal O Povo e ele estava. Então, apresenta daqui, apresenta dali, me apresentou como vice-presidente social da Young. E o Ivan falou que tinha muita vontade de fazer o centenário do Fluminense. Eu falei: ‘ah, mas já passou’. Era Junho ou Julho de 2002. Mas, foi até ele alertou que o centenário começa no aniversário e vai até o outro aniversário[…] E eu tinha o David Fischel  — então presidente do Flu — como um ‘pai’ para mim dentro do clube. Aí fui nele direto. Eu fiquei meio que, como um ponte. O clube falava comigo, eu falava com a Escola. A Escola falava comigo, eu falava com o clube”, explicou Frajola, que entrou para o mundo do Carnaval neste desfile, onde permanece até hoje.

Com a ajuda de Frajola, Ivan conseguiu se reunir com a diretoria do Flu e apresentar a sua proposta.

“Fui muito bem recebido pelo relações públicas na época, passei a história, o porquê do enredo. Na época, eles me disseram que o Fluminense estava em dificuldades financeiras, não poderia ajudar com grandes coisas. Falei tudo bem, o importante era a autorização desse enredo. Eles me deram a autorização para fazer o enredo, me deram ajuda para pagar os geradores da Escola. Inclusive, fizemos o desfile de fantasias nas Laranjeiras”, contou Ivan Martins.

Veio exaltar na passarela, em forma de poesia o brilhantismo e a tradição do tricolor

Autorizado pelo Fluminense, sob a direção do carnavalesco Luciano Costa, nascia o enredo “Nas Asas da Realização, Entre Glórias e Tradições, a Rocinha Faz a Festa dos 100 Anos de Campeão… Sou Tricolor de Coração!” . Mais do que falar sobre futebol — que, embora seja (junto com o Carnaval) uma das paixões do brasileiro, é sempre arriscado — a Escola convidava a Avenida para um passeio pela história do Flu dentro e fora dos gramados.

O  samba-enredo campeão, de autoria dos jovens Márcio Branco (do Grupo Clareou), Diego Archanjo (o tricolor da parceria), Fabiano Soares (o Lenny) e Thiago Martins, além do saudoso Rubinho da Locadora — que faleceu em 2003 —, mostrava isso. Os versos citam, por exemplo, a Taça Olímpica — título que o clube recebeu das mãos do Comitê Olímpico Internacional (COI) em 1949 por seus serviços prestados em todos esportes — e o cronista Nelson Rodrigues, um ilustre torcedor que cunhou frases históricas sobre o Tricolor como “se quereis saber o futuro do Fluminense, olhai para o seu passado. A história tricolor traduz a predestinação para a glória”.

“Foi nossa primeira vez escrevendo um samba enredo. Já havíamos sido ritmistas, ala das crianças… Começamos a escrever alguns rascunhos e o nosso parceiro tricolor a todo tempo ajudava com o hino do Flu, que acabamos aprendendo no processo. Tínhamos a ideia de fazer algumas referências ao hino, pegando alguns versos”, conta Thiago, sobrindo de Ivan Martins e um dos responsáveis pela parte criativa do samba ao lado de Branco e Lenny.

“Segundo o carnavalesco, o que estava mais próximo ao que ele havia pensado em fazer no enredo, era o nosso”

Mas para isso, Thiago e cia. precisaram enfrentar uma lenda que entendia de samba e conhecia profundamente o clube. Jerômino Barreto, o Gegê, histórico massagista do clube, reclamou por ter ficado em segundo lugar na disputa.

“Eles vieram com a torcida Young Flu, com aqueles bandeirões de estádio e até nós pensamos que eles venceriam. Por serem do clube, por terem investido um dinheiro alto. E de fato, era um bom samba. Os três sambas da final, poderiam ter sido escolhido sem problema. Mas, segundo o carnavalesco, o que estava mais próximo ao que ele havia pensado em fazer no enredo era o nosso”, lembrou Thiago.

Escolha do samba-enredo para o Carnaval de 2003
Momento em que Zezé da Rocinha — hoje Zezé Amizade — tenta ler o samba-enredo vencedor, enquanto Thiago Martins começa a cantar. O compositor, junto com o parceiro Lenny, foi quem cantou no dia da escolha (Foto: Acervo pessoal de Thiago Martins)

A voz abaixo, aliás, é do intérprete Carlinhos de Pilares por um motivo inusitado. A Borboleta, assim como parte dos anos anteriores, entraria com Zezé da Rocinha. Mas, o puxador acabou perdendo o posto por saber cantar todos os sambas da disputa, menos o que ganhou. De acordo com Thiago, Ivan Martins fechou contrato com Carlinhos no dia da gravação no estúdio para o CD oficial.

“Cruzou no céu a borboleta
Numa fantástica viagem multicor
E veio exaltar na passarela, em forma de poesia
O brilhantismo e a tradição do tricolor
Hoje a Rocinha ergue a bandeira do querido pavilhão
E traz Nelson Rodrigues pra essa festa
Dos 100 anos de um clube tantas vezes campeão
Vamos lá nação que a hora é essa
Mas que emoção, meu coração incendeia
Só pó-de-arroz, sou tricolor na veia (bis)
Nas pistas campeão, das quadras vencedor
Unido e forte pelo esporte com vigor
Na arte, na cultura e no lazer
Seu lema é vencer com uma força sem igual
No Salão Nobre, festas, bailes, que beleza!
Recebia a nobreza, um Clube Social
Na sua história, entre títulos e glórias
A Taça Olímpica, sua maior vitória
Hoje a torcida comemora um encontro genial
Do samba, futebol e carnaval
Abre o seu coração, diga violência não
Vem com a gente se acabar nessa folia (bis)
Vem gritar com emoção, são 100 anos de paixão
Sou tricolor de coração e sou Rocinha”

“O Fluminense foi um grande enredo. Eu tenho amigos meus e não amigos, mas que são tricolores, que falam ‘esse é o maior flamengusita e faz o maior ‘sambão’ para o Fluminense’. Porque o samba foi bonito. Eu tenho vários amigos meus tricolores, que viraram amigos meus depois que eu fiz o enredo. Isso para mim foi o maior orgulho, um orgulho muito grande mesmo”, relembra Ivan Mendes.

Haviam também, entre as alas e alegorias, referências a Belle Époque, período de auge do movimento Art Nouveau que refletia, por exemplo, na arquitetura da sede social do clube com seus vitrais e cristais, onde aconteciam alguns dos grandes bailes, óperas e concertos da cidade no início do Século XX.

“Ele queria ampliar a história do Fluminense. Que a história era muito rica para só falar de futebol, de um gol aqui, um título ali”

Carnavalesco Luciano Costa (de branco) ao lado dos diretores de harmonia da Acadêmicos da Rocinha
Carnavalesco Luciano Costa (de branco) ao lado dos diretores de harmonia da Acadêmicos da Rocinha (Foto: Acervo pessoal de Thiago Martins)

Fanático pelo Fluminense e apaixonado por Carnaval, Frajola passou a acompanhar os preparativos para o desfile no barracão da Acadêmicos da Rocinha em São Cristóvão. O hoje comentarista do programa de rádio Pop Bola Esporte Clube viu de perto os desafios de Luciano para traduzir a história centenária do Flu em uma liguagem carnavalesca.

“Em momento nenhum eu tive dúvida que a torcida iria comprar a história. O Luciano foi muito sagaz quando não focou só no futebol. Ele não conhecia o Fluminense, assim internamente, e começou a procurar, fez uma pesquisa tanto dentro quanto fora do clube. Então, quando ele falou comigo, sabia que o Fluminense era um clube importante no Rio de Janeiro. Fora o futebol, tinha os bailes, todos os esportes olímpicos, Segunda Guerra, o burro que comia a grama… Ele queria ampliar a história do Fluminense. Que a história era muito rica para só falar de futebol, de um gol aqui, um título ali”, comentou Frajola.

Frajola, por exemplo, ficou responsável por organizar os integrantes da ala do tênis. Além disso, também tentou reunir figuras da história do clube para o desfile. Um deles seria o senhor Guilhermino, mais conhecido pelos tricolores como “Careca do Talco”, antes de descobrir que o torcedor havia falecido.

Frajola ao lado do Careca do Talco e fantasiado do personagem no desfile da Acadêmicos da Rocinha
No entanto, graças a magia do Carnaval, o “Careca do Talco” ainda assim se fez presente no desfile. Foi o próprio carnavalesco Luciano Costa, aliías, quem convenceu Frajola a raspar a cabeça para homenagear o personagem (Foto: Reprodução/FluTV)

Hoje a torcida comemora um encontro genial do samba, futebol e carnaval

No dia 1º de Março de 2003, uma segunda-feira de Carnaval, pouco depois da meia-noite, a Marquês de Sapucaí ganhava as cores da Acadêmicos da Rocinha e do Fluminense. Assim, as borboletas em Art Nouveau da comissão de frente — como a do início desta reportagem — abriam caminho para a elogiada ala das baianas que traziam, nos turbantes, bolos de aniversário para os 100 anos do Flu.

Carro abre-alas com o rosto do cronista Nelson Rodrigues
O carro abre-alas “traz Nelson Rodrigues pra essa festa” (Foto: Juha Tamminen)

Com Carlinhos de Pilares puxando o samba e mais de 2,2 mil componentes divididos em 20 alas e cinco alegorias, a Rocinha fez uma viagem no tempo. Sempre com alegria e vibração, lembrou desde a fundação em cinza e branco em 1902 aos esportes olímpicos e o pó-de-arroz da torcida tricolor.

Bateria da Acadêmicos da Rocinha tocou com as cores do Fluminense no Carnaval de 2003
Bateria comandada por Batalha tocou toda fantasiada de Cartola, então mascote do Flu. Enquanto as musas vieram de biquíni verde (Foto: Juha Tamminen)

No alto do carro que fazia referência ao pioneirismo vinha o então presidente do Fluminense, David Fischel — que faleceu em 2014, aos 79 anos.

Então presidente do Fluminense, David Fischel desfilou na Acadêmicos da Rocinha em 2003
Responsável por selar o contrato o patrocínio da Unimed, David Fischel presidiu o Fluminense entre 1999 e 2004 (Foto: Juha Tamminem)

Por fim, uma última ala com as cores dos principais clubes do Rio encerrava o desfile com uma importante mensagem de paz e respeito no esporte mais popular do país.

Sou tricolor de coração e sou Rocinha

Embora a Acadêmicos relembre com orgulho do desfile que em 2003 homenageou o centenário do Fluminense, a apresentação não agradou tanto aos jurados. A Borboleta teve sobretudo problemas de evolução — que é quando a escola deixa espaços vazios na passarela. Por isso, somou 170,8 pontos e acabou só com a 10ª colocação no Grupo A. Mas, ainda assim, a Escola no final cumpriu a profecia de Alcyr da Estácio e não caiu por três décimos.

“Minha maior lembrança é que após o desfile, uns dois meses depois, o Fluminense fez uma festa no Salão Nobre, minha esposa e o carnavalesco fomos convidados. Como flamenguista, eu jamais teria a oportunidade de ir lá em festa. Ir lá em Laranjeiras, subindo aquela escados, com aqueles vitrôs lindos, maravilhosos. Quer dizer, já tinha feito o desfile e dois meses fui convidado. Isso para mim foi inesquecível”, encerrou Ivan Mendes.

Dois anos depois, a conquistaria a Série A dois anos depois com o enredo Um Mundo sem Fronteiras. Em 2023, a Borboleta, no entanto, não vai desfilar na Sapucaí. Na Série Prata — atual terceira divisão do Carnaval — e vai desfilar no próximo sexta-feira (24) na Avenida Ernani Cardoso.

“Vai passar nessa avenida um clube popular, de todas as cores, com pé no samba”: escola de samba da torcida do Fluminense homenageia Chico Guanabara no Carnaval 2023

ST

 


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Lucas Meireles

Jornalista formado pela UFRRJ, apaixonado por esportes e pelas boas histórias.